SINOPSE: A Batalha de Argel, um dos filmes políticos mais importantes da história do cinema, descreve eventos decisivos da guerra pela independência da Argélia, marco do processo histórico de libertação das colônias européias na África. A ação concentra-se entre 1954 e 1960, mostrando como agiam os dois lados do conflito: enquanto o exército francês recorria à política de eliminação e à tortura, a Frente de Libertação Nacional (FLN) desenvolvia técnicas não convencionais de combate baseadas na guerrilha e no terrorismo. Neste filme de imensa atualidade, com trilha sonora original de Ennio Morricone, o mestre italiano Gillo Pontecorvo mudou a história do cinema político ao construir uma narrativa de tirar o fôlego, em que mistura técnicas de documentário e ficção. DOWNLOAD DO FILME (inclui legendas em português): Making Off.
Reflexões sobre os choques entre o Imperialismo Colonizador e o Direito à Auto-Determinação dos Povos – Por Eduardo Carli para A Casa de Vidro
“O dever da memória é essencial, porque o passado nos atormenta, porque ele ainda nos marca cruelmente com seus estigmas, e porque é importante virar, o mais rápido possível, estas páginas que infelizmente não podemos rasgar. A memória também é essencial para tornar mais firme nosso repúdio absoluto e definitivo às práticas abjetas e a todas as ideias que aviltam a humanidade. A memória, enfim, é essencial para desencorajar, daqui para frente, todas as tentativas de reanimação da besta imunda que poderia ainda dormitar no inconsciente dos homens. (…) Para exorcizar o passado e, no presente, fazer justiça, é preciso avaliar os danos imediatos e os efeitos duradouros do que foi sofrido por alguns e infligido por outros, sem ceder à tentação do rancor nem às simplificações…” FRANZ FANNON, Les Damnés de La Terre (Os Condenados da Terra / The Wretched of The Earth)
Mesmo quando o presente sangra, o dever de memória continua válido. As urgências das lutas de hoje não devem apagar de nosso horizonte a necessidade de aprender com o passado. Ao fim de Janeiro de 2024, após quase 4 meses da agressão sionista contra Gaza que já causou a morte de mais de 25.000 pessoas (10.000 delas eram crianças), lembro daquilo que estudei sobre o processo de descolonização da África após a Segunda Guerra Mundial: esta quantidade de cadáveres que o Estado de Israel já “produziu” em sua campanha de punição coletiva e limpeza étnica em Gaza só tem paralelo com as mortes-em-massa impostas por potências imperiais européias contra movimentos de libertação nacional em estado de sublevação nas colônias africanas.
O paralelo deveria ser óbvio: o settler colonialism de Israel é o herdeiro do imperialismo europeu – e vale lembrar que o zionismo foi cozinhado por judeus, sobretudo do Leste da Europa, desejosos de fundar um estado judeu na Palestina, ainda que para isto fosse necessária a expulsão violenta da população ali residente (o que realizou-se, com imenso derramamento de sangue, na Nakba de 1948).
É tempo oportuno de lembrar da obra-prima fílmica de Pontecorvo e dos escritos de Franz Fanon. Urge novamente superar tanto o pacifismo ingênuo dos que, usando as insígnias das pombas brancas, pregam um cessar de hostilidades que se faria “magicamente”, sem nenhum desmantelamento radical das estruturas de opressão sistemática e de apartheid, quanto a atitude também ingênua e desonesta de “condenar igualmente os dois lados do conflito”, nos moldes daquilo que se chama no Brasil, no âmbito da historiografia sobre a ditadura militar (1964-1985), de “teoria dos dois demônios”.
Em termos mais simples: como Malcolm X também nos ensinou, urge não confundir jamais a violência do opressor com a violência do oprimido – não são fenômenos idênticos, nem nosso juízo ético-político deve ser o mesmo diante da violência estrutural e de longo-termo do poder opressor-colonizador-ocupante e da violência resistente, guerrilheira/”terrorista” dos que estão sob as botas do Império.
Considero Pontecorvo um gênio do cinema político e revejo com muito gosto suas obras-primas como Queimada (1969) e Kapo (1960). Nenhum de seus filmes impactou-me e deixou uma marca tão indelével quanto A Batalha de Argel – de fato, uma obra-prima da sétima arte que envelheceu muito bem. Assistir a este clássico do cinema é mais que uma experiência estética impressionante, é também uma aula magna de história e de política que nos transmite instrução e indignação em altas e salutares doses!
Certos filmes nascem não da imaginação ou da fantasia, mas a partir de vivências concretas e viscerais – e é esse o caso de A Batalha de Argel, um dos mais impressionantes espécimens do chamado cinema verité, e cujo roteiro foi escrito por Franco Solinas a partir do livro de memórias de Saadi Yacef, um dos líderes da FNL. Rodado com atores não-profissionais e milhares de coadjuvantes argelinos, com táticas de filmagem típicas de documentários ou tele-reportagens, a obra-prima de Pontecorvo imerge o espectador no conflito que opôs o império francês e sua colônia no Mediterrâneo após a 2ª Guerra Mundial.
Estamos nos anos 1950 e os europeus, com teimosia canina, prosseguem fincando os dentes em suas colônias na África e na Ásia em postura sanguessuga. Mas o vento dos tempos sopra cada vez mais forte em favor da libertação dos povos ocupados e oprimidos por potências estrangeiras, seja porque a recém-nascida ONU (Organização das Nações Unidas) procura favorecer o ideal de auto-determinação das nações, seja porque levantes, revoluções e guerras anti-imperialistas estouram e são vitoriosas em muitos recantos do mundo (como na Indochina que, depois de expulsar o imperialismo francês, infelizmente ver-se-á cerceada pelo imperialismo yankee que, nos anos 1960 e começo dos 1970, em sua insana cruzada anticomunista, invade e devasta o Vietnã e o Camboja….).
O filme de Gillo Pontecorvo – que havia sido um ativista anti-Mussolini na época do fascismo italiano e que chegou a filiar-se ao Partido Comunista – é mais que uma obra-prima artística; é um memorável e imorredouro manifesto de repúdio ao imperialismo agressivo, torturador e genocida.
É chocante ver os franceses, que haviam acabado de vivenciar os horrores da 2ª Guerra, que tinham vivido sob o jugo da ocupação de Paris pelo III Reich por alguns anos, praticarem na África alguns dos horrores que as SS e a Gestapo perpetraram pela Europa. Os muçulmanos de Argel, espremidos na Kasbah (80 mil pessoas em 2 km quadrados!), parecem constituir, para as autoridades francesas, um grupo de párias subhumanos vivendo em um estado de exceção. Dentro dos limites da Kasbah, ao que parece, vale-tudo – as normas éticas param de valer, como ocorria no interior dos campos de concentração do regime hitlerista.
Os muçulmanos estão sujeitos a terem suas casas invadidas pelo exército francês a qualquer momento; prisões em massa são realizadas na caça aos suspeitos de pertença à FNL; os interrogatórios são repletos de torturas brutais; muitas lideranças da sublevação argelina contra o poder imperial são exterminadas… As autoridades justificam todas as violações dos direitos humanos dizendo que é urgente cortar a cabeça desta “organização terrorista” que é a FNL e que, volta-e-meia, na Argel dos europeus (na parte da cidade que é segregada da Kasbah), manda pelos ares, com suas bombas caseiras, cafés e danceterias, estropiando e matando civis às dezenas.
A violência é praticada dos dois lados, é evidente: caem mortos “inocentes” em ambos os campos da Argel segregada. O ciclo de violência parece não ter fim pois cada bomba gera um rancor e uma vontade de vendeta. E esta, me parece, é uma situação de uma atualidade impressionante, que possui muitas similaridades, por exemplo, com o que ocorre na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, onde uma imensa população palestina, que após a Nakba (1948) foi espremida em territórios super-povoados (como os argelinos na Kasbah), e que sofre com os desmandos e abusos do exército de Israel (devidamente apoiado pelos EUA).
Não há dúvida que, na batalha de Argel, o poder bélico do exército francês dá de goleada nos recursos da FNL; tanto que esta tem que recorrer ao terrorismo, que costuma ser o último recurso dos desesperados, a voz sangrenta dos que não são ouvidos. Uma similar desproporção entre os poderes também é marca da Intifada dos palestinos, que lutam com pedradas, pauladas e molotovs contra o poderio bélico imensamente superior dos israelenses, dotados de mega-tanques e ultra-mísseis (e tendo, além disso, a bomba atômica como um ás na manga).
Ao ver as cenas em que o exército francês instaura check-points militares nas fronteiras entre a Kasbah e a Argel européia, também me lembrei do apartheid que existe no Estado de Israel, cujas fronteiras só podem ser transpostas depois de uma rigorosa triagem anti-terrorista. No filme de Pontecorvo, as mulheres desempenham um papel crucial na batalha pela independência dos argelinos – já que os franceses focavam suas suspeitas e revistas principalmente sobre a população masculina, as mulheres conseguiam atravessar com mais facilidade os check-points, levando as armas e bombas que seriam utilizadas nos atos terroristas e atentados contra militares franceses.
Uma das maiores qualidades do filme está em sua capacidade de nos mostrar um amplo cenário social, um quadro realmente coletivo, com algumas impressionantes cenas de multidão inspiradas no cinema de Einseinstein e Rosselini. É como se Pontecorvo e sua equipe quisessem sempre destacar que, apesar da importância de certos protagonistas (sejam eles lideranças da FLN ou do exército francês), quem decide de fato a História são as massas. Os militares do império francês que se lançaram a cortar a cabeça da “tênia” da FLN, e que de fato conseguiram exterminar quase todos os chefes da organização, logo descobrem que através das constantes torturas, prisões e assassinatos perpetrados contra os argelinos acabaram por lançar lenha num caldeirão de ódio coletivo.
Como haviam previsto grandes personalidades da intelectualidade, como Jean-Paul Sartre e Albert Camus, os desmandos do colonialismo francês iriam gerar não um silenciamento das demandas da Argélia colonizada, mas um exacerbamento da solidariedade anti-imperialista. Tanto que as gigantescas manifestações que estouram em 1960, chamando a atenção da opinião pública mundial, são o ponto-final do filme de Pontecorvo – que termina não com a vitória efetiva dos argelinos (a Independência só viria em 1962), mas com uma espécie de prelúdio do triunfo futuro. São cenas das mais esplêndidas da história do cinema.
Retrato pungente e memorável da batalha de um povo pela auto-determinação, A Batalha de Argel é também uma obra que suscita reflexões várias sobre a violência, praticada, no caso, pelos dois antagonistas, mas com intenções diversas. Se a França, por um lado, utiliza sua violência com o fim de prosseguir seu controle imperial sobre a colônia africana, exterminando toda a resistência que nasce da Kasbah sublevada, os argelinos fazem uso da guerrilha e do terrorismo como um protesto desesperado contra a opressão e a ingerência do ocupante ocidental. É um filme, pois, que convida-nos a jamais confundir a violência imperial do agressor com a violência reativa dos oprimidos.
Este inesquecível monumento do cinema nos deixa marcado na memória alguns dos eventos mais importantes da luta da Argélia pela independência e, como ocorre com toda obra-prima, prossegue de uma atualidade impressionante. Pois vivemos ainda em tempos em que o mundo está cindido por batalhas colossais – e, apesar da situação bélica global ser considerada por muitos, de modo simplista, como a luta do Ocidente contra o Islã, o que está em pauta talvez seja a velha luta, já tão conhecida, entre o imperialismo (eurocêntrico ou yankee-cêntrico) e o direito de autonomia dos povos.
Em nossos tempos de Império Yankee, com intervenções militares de alto calibre, chefiadas pelos EUA, que levaram ampla devastação ao Afeganistão e ao Iraque (e agora com ameaça de seguir em frente rumo à Sìria!), é importante questionar os antecedentes trágicos desta posição de “xerife do mundo” que certos estados ocidentais costumam assumir. Esta soberba, esta arrogância, esta hýbris do estado que se auto-declara “bom e justo”, e que decide-se a instalar pela força de suas bombas e seus drones um sistema político que lhe seja de conveniência em um país distante, é frequentemente punido pela história com catástrofes gigantescas.
Também a França cometeu gravíssimas violações de direitos humanos contra o povo da Argélia sob o pretexto de lutar contra o terrorismo, e caminho muito parecido seguem hoje em dia os yankees e sua pavorosa máquina de guerra. Contra isso, a obra-prima de Gillo Pontecorvo é um excelente lembrete, um wake-up call urgente, a nos mostrar que a tirânica invasão imperialista quase nunca é acatada ou acolhida pela população invadida, e que quando um poder imperial não respeita os direitos de autonomia de um povo que quer sob seu jugo, este povo não tarda a se unir e se solidarizar na revolta (“eu me revolto, logo somos”, escreve o argelino Albert Camus). Contra a violência da ingerência externa, contra a soberbia de xerifes imperiais, os povos não cessam de bradar por seu direito de auto-determinação – um direito que exigirão que seja respeitado, mesmo que tenham que opor pedradas à tanques e bombas terroristas a exércitos hi-tech.
P.S. DO AUTOR: Este texto foi desenvolvido a partir de outro escrito, publicado em Setembro de 2013 em Depredando o Orelhão.
Publicado em: 27/01/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia